Desafios e Tendências para a Gestão da Qualidade nas Cadeias Agroalimentares na Europa
Sinopse O artigo apresenta questões importantes e tendências para a gestão da qualidade nas cadeias agroalimentares na Europa, tais como: aspectos do sistema francês de certificação da qualidade de produtos agroalimentares, incluindo denominação de origem controlada na França, selos de qualidade, preocupação com segurança alimentar e produtos transgênicos e produtos orgânicos. a atuação das grandes cadeias de supermercados como agentes de coordenação das cadeias; o papel das câmaras de agricultura para o estabelecimento de padrões de qualidade e defesa dos interesses dos produtores rurais; a iniciativa Bowland - um programa piloto patrocinado pelo governo inglês com objetivo de incentivar produtores rurais a agregar valor à produção, abordando aspectos ambientais e de qualidade dos produtos. 1. Introdução Pressões das grandes redes de supermercados por preços menores, produtos de maior qualidade, maiores escalas de produção e distribuição em amplas áreas geográficas, associadas a uma legislação sanitária e ambiental rigorosa, são os desafios que as cadeias agroalimentares européias vem enfrentando nos últimos anos. Neste artigo iremos descrever o crescente poder de coordenação das cadeias agroalimentares exercido pelas grandes redes de supermercados e as principais estratégias adotadas por produtores e agentes das cadeias agroalimentares da França e Inglaterra para aumentar a competitividade de seus produtos. Estes temas foram abordados durante as visitas de estudantes brasileiros a várias agroindústrias e duas Universidades na Inglaterra e França entre os dias 13 e 29 de maio de 2000. O programa foi coordenado pelo Departamento de Engenharia de Produção da UFSCar, em conjunto com a Victoria University of Manchester, Inglaterra, e a Université de Nantes, França. Participaram da jornada 20 estudantes e dois professores dos cursos de pós graduação em Gestão Agroindustrial da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e da Universidade Paranaense (UNIPAR). 2. O poder de coordenação das grandes redes de supermercados A atuação das grandes de supermercados na Europa vem promovendo significativas transformações na organização das cadeias agroalimentares e da produção rural, em virtude de seu crescente poder de negociação e de coordenação. Entre os principais fatores que tem impulsionado estas mudanças, podemos destacar: As mudanças de hábitos dos consumidores - cada vez mais, os consumidores preferem centralizar suas compras nos supermercados e adquirir produtos fáceis de usar, mais baratos e com qualidade assegurada. Este aspecto é, freqüentemente, associado às marcas próprias dos supermercados e ao controle da qualidade exercido pelos mesmos sobre seus fornecedores. Em particular, no caso de produtos frescos, produzidos localmente, a mudança dos hábitos dos consumidores vem reduzindo sensivelmente os pontos de venda tradicionais, levando os produtores a ter nos supermercados seu principal canal de distribuição, o que aumenta mais ainda o poder de barganha dos mesmos. O crescimento e concentração das grandes redes de supermercados - este fenômeno, também observado no Brasil, vem se acentuando notadamente após 1992, em função da consolidação da Comunidade Econômica Européia, aumenta o poder de negociação dos supermercados junto aos produtores e fornecedores em geral. A possibilidade de comprar produtos de qualquer país da comunidade, principalmente produtos não perecíveis, congelados ou processados - com a integração econômica, os supermercados podem adquirir, com raras exceções, qualquer produto de qualquer país, o que tem intensificado as pressões para redução de preços pagos aos produtores (a qual não é necessariamente repassada para o consumidor). As grandes redes de supermercados, portanto, tem exercido um papel preponderante na coordenação das cadeias agroalimentares, definindo novos padrões de desempenho e de relacionamento entre os agentes. Por um lado, identificam as necessidades e exigências dos consumidores, e, por outro, definem e impõem padrões de qualidade e rastreabilidade, incluindo marcas próprias, condições de entrega e preços (sempre menores!) a seus fornecedores. Em que pese a questão dos pesados subsídios agrícolas, a combinação de preços em queda com exigências crescentes de qualidade e volume, vem conduzindo a uma concentração do setor produtivo, a uma maior integração vertical dos agentes das cadeias agroalimentares e à busca de estratégias de diferenciação da qualidade dos produtos ou que, de alguma forma, permitam a viabilidade da produção rural. Estas estratégias são apresentadas a seguir. 3. Integração vertical da produção rural com empresas processadoras Face à necessidade de maiores escalas e novas exigências para fornecimento e distribuição, muitos produtores simplesmente tem abandonado as atividades, mudado de ramo ou vendido suas propriedades. Outros, entretanto, tem se associado a empresas ou cooperativas que recebem os produtos do campo, controlam a qualidade, processam, embalam e os distribuem na qualidade desejada pelos supermercados. Existem diversas graus de processamento - desde a simples seleção e limpeza, até o preparo de pratos congelados, sendo comum a produção com a marca dos supermercados. A remuneração dos produtores é definida de diversas maneiras, mas, na maioria das vezes, está atrelada aos resultados das empresas e aos preços recebidos pela mesmas. Estas empresas, por vezes antigas cooperativas que passaram a ser empresas independentes, são qualificadas e avaliadas regularmente pelos supermercados e atuam de forma integrada com estes em termos de programação de produção e distribuição. As maiores possuem sistemas de gestão da qualidade próprios ou certificados ISO 9000. Pudemos observar este fenômeno na produção de alimentos frescos minimamente processados, pratos congelados e, também, na produção de leite fresco. Um grande laticínio em Manchester, Inglaterra, com produção de um milhão de litros por dia (2), comercializa a maior parte de sua produção sob as marcas de duas grandes redes de supermercados. A planta possui equipamentos e instalações modernas com alto nível de automação em todas as atividades, emprega cerca de 300 funcionários em 3 turnos, e teve um lucro de 19 milhões de libras esterlinas (cerca de R$ 57 milhões) em 1999. A empresa tem uma rede de produtores qualificados na região que fornecem o leite dentro dos padrões de qualidade, higiene e temperatura definidos na legislação, que é bastante rígida; os produtores recebem orientação técnica e são avaliados regularmente pelos técnicos do laticínio. Apesar de não ter certificado ISO 9000, a empresa possui um sistema de gestão da qualidade similar, que possibilita a rastreabilidade a todos os carregamentos recebidos, e é auditada regularmente pelos supermercados. 4. Selos de qualidade e certificados de denominação de origem Apesar de não serem uma novidade, os selos de qualidade e os certificados de denominação de origem têm apresentado grande crescimento nos últimos anos na Europa, de maneira geral, e na França, em particular. Além da garantia da segurança alimentar, os selos objetivam diferenciar os atributos de qualidade e/ou do modo de produção do produto certificado em relação aos demais, com a finalidade de aumentar seu valor para o consumidor. O sistema Francês de certificação da qualidade é, provavelmente, um dos mais avançados da Europa, possuindo inúmeros selos de qualidade e de conformidade de produtos. O sistema é supervisionado pelo órgão de acreditação do Francês - COFRAC, que estabelece os requisitos para a atuação dos certificadores, de acordo com a norma européia EN 45011. Há também a Comission Nationale des Label e de Certification, ligada ao Ministério da Agricultura, e que conta com representantes de diversos órgãos ligados aos agentes das diversas cadeias agroalimentares, sendo responsável pela padronização de critérios para certificação. A criação de um selo, normalmente, é uma iniciativa de uma entidade representativa de produtores de uma região ou de uma cadeia agroalimentar, a qual, com apoio de órgãos de pesquisa e especialistas, estabelecem as especificações para a certificação, ou "cahiers de charge", que são posteriormente registradas no Ministério da Agricultura, e posteriormente utilizadas para certificação por organismos acreditados pelo COFRAC. O sistema Francês possui quatro grupos principais de selos oficiais, ou "Signes Officiels de Qualité", conforme abaixo: Denominação de Origem Controlada (Appelation d'Origine Controlée - AOC) É o mais antigo dos sistemas de certificação da qualidade dentro da área agroalimentar. Surgiu formalmente em 1935, abrangendo vinhos e bebidas alcoólicas destiladas, entretanto já era utilizado desde o século passado para diferenciar vinhos produzidos em regiões isentas de doenças que afetavam os vinhedos. Nos anos 60, derivados do leite também passaram a utilizar o sistema. Em 1990, o assunto foi estendido aos demais produtos agroalimentares, com regulamentação nacional que delimitou as diversas regiões produtoras do país. A AOC identifica um produto típico e específico, característico de uma região e intimamente ligado a fatores geográficos e culturais que afetam o modo de produção. A caracterização do produto e do modo de produção são documentadas em especificações denominadas "cahiers de charge", que são registradas junto aos órgãos governamentais; os produtores da região interessados em receber o selo AOC são submetidos a um processo de avaliação coordenado pelo Instituto Nacional de Denominações de Origem - INAO, com a a participação de entidades locais. Atualmente, além de vinhos, onde 70% da produção nacional possui denominação de origem controlada, inúmeros outros produtos agroalimentares vem sendo incluídos em programas de AOC, tais como queijos e produtos de laticínios, azeite de oliva, frutas e legumes, aves e outros. Rótulo Vermelho (Label Rouge) É um rótulo que identifica produtos de qualidade superior. Foi criado em 1960 e pode ser aplicado para todos os produtos agrícolas e alimentares. O certificado cobre a toda a cadeia, indicando que exigências severas de controle em todos os estágios de produção, processamento e distribuição são seguidas. É aplicado intensamente no mercado de frangos, mas outros produtos começam a adotá-lo. No caso específico da produção de frangos, as exigências cobrem desde o incubatório até os pontos de venda, passando pela produção, abate e distribuição. Os requisitos abrangem raças de crescimento lento, tempo para abate (84 dias contra 45 do frango comum), rações produzidas sem farinhas de origem animal, espaço para movimentação do frango, distância entre a granja e o abatedouro, etc, com o objetivo de produzir um frango de qualidade superior. O frango Label Rouge responde por cerca de 40% das vendas totais, com preços 30% superiores. Selo de qualidade certificada É o selo mais recente, foi criado em 1990, e se aplica a um determinado produto e não para a cadeia como um todo. Este selo atesta que o produto possui características de qualidade e/ou foi produzido sob regras de produção específicas e estritamente controladas, de forma a manter a sua uniformidade e regularidade. Certificado de Agricultura Biológica Apenas produtos contendo, no mínimo 95% de matérias primas provenientes de agricultura biológica podem receber este selo surgido em 1980. A demanda por produtos 'naturais", incluindo os biológicos e, principalmente, não elaborados com OGM's (organismos geneticamente modificados) é muito grande e tem sido uma alternativa para muitos produtores, em função do diferencial de preço alcançado. Além dos certificados oficiais, certificados regionais e de redes de supermercados também tem sido criados. Por exemplo, os selos desenvolvidos pelas redes Promodés e Carrefour para certificar a qualidade diferenciada de carnes ofertadas em suas lojas, e que abrangem produtores, processadores e distribuidores (Nasser, 1999). Nos últimos anos, a quantidade de produtos certificados, em variedades e volumes de produção tem aumentado significativamente. O setor de frangos lidera com 45% dos certificados, seguido do setor de carnes, com 17%, laticínios e produtos processados com 12%. A Comunidade Européia também adotou sistemas para certificação da qualidade de produtos agroalimentares para valorização dos mesmos após 1992, em vários pontos similares aos do sistema francês. Estes sistemas são: Denominação de Origem Protegida (Appellation d'Origine Protegée - AOP): similar ao AOC francês, indica que o produto é elaborado numa determinada região e sua elaboração requer um "Know How" reconhecido. Indicação Geográfica Protegida (Indication Géographique Protegée - IGP): indica que existe, no mínimo, uma ligação entre o território e as etapas de produção, transformação ou elaboração de um produto. Atestado de Especificidade (Specialité Traditionelle Garantie - STG): não faz referência à origem, mas valoriza uma composição tradicional do produto ou um modo tradicional de produção. 5. Atuação institucional A participação em associações e projetos institucionais, como a "Maison d'Agriculture Loire Atlantique", em Nantes, ligada à Câmara da Agricultura Francesa, ou a "Bowland Initiative", coordenada pelo governo inglês, tem possibilitado a busca de soluções para se adequar às novas exigências do mercado e para elevar o valor da produção agrícola, bem como a renda dos agricultores. Casas da Agricultura na França As casas da agricultura existem na França há mais de 70 anos, porém tiveram forte crescimento após a Segunda Guerra Mundial. Reúnem representantes de todos os setores envolvidos com as atividades agroindustriais: proprietários rurais, sindicatos, indústrias, cooperativas, trabalhadores assalariados e aposentados, que são eleitos por um período de seis anos. Sua a finalidade é representar os interesses do setor politicamente, por meio de encaminhamento de propostas para projetos de lei, ajudar os agricultores e demais agentes a se enquadrar na legislação e exigências do mercado, fornecendo treinamento e assessoria especializada e desenvolver projetos e estudos para melhoria da qualidade e produtividade na produção agropecuária. Entre os temas tratados pelas casas da agricultura, está o conceito de multifuncionalidade da agricultura, que tem sido utilizado para defender os subsídios governamentais ao setor, e orienta diversos projetos realizados. A multifuncionalidade trata da integração da agricultura no meio ambiente de uma região, analisando seu papel sob uma visão holística que abrange desde a segurança de abastecimento de alimentos, até a preservação de recursos naturais, biodiversidade e paisagem, além de aspectos econômicos, sociais e políticos. Os técnicos das casas da agricultura participam, ainda, de projetos para de elaboração de normas e especificações para o estabelecimento de selos da qualidade. A "Maison Loire Atlantique", situada na Bretanha, que é a principal região agrícola da França, conta com 220 técnicos que desenvolvem trabalhos para melhoria da qualidade e produtividade em diversas áreas, como a produção de leite, suínos, bovinos e ovinos, frutas e hortaliças e vitivinicultura. Bowland Initiative A "Bowland Initiative" é um projeto cujo objetivo é gerar benefícios ambientais e econômicos para os agricultores da região de Bowland, na Inglaterra, financiado com fundos da União Européia. O projeto é conduzido por representantes do ministério da agricultura, do condado de Lancashire, Conselhos Distritais e dos fazendeiros locais, e conta com especialistas de diversas áreas, como desenvolvimento de negócios, produção agrícola e florestal e desenvolvimento ambiental. A participação dos fazendeiros no projeto é voluntária, entretanto, a procura superou tremendamente as expectativas, que eram de, no máximo 50 a 60 fazendeiros. Atualmente há uma lista de espera e existem estudos para ampliação do projeto. As mudanças das condições sócio econômicas na região, motivadas pela queda acentuada de preços dos produtos agrícolas, têm levado inúmeros fazendeiros da região a procurar saber sobre o projeto. Há a necessidade de equilíbrio entre a melhoria econômica e ambiental e os fazendeiros que conseguem apresentar um desempenho satisfatório num processo de avaliação, podem ter acesso a assistência técnica e gerencial. As prioridades para os trabalhos são definidos pelos fazendeiros e os técnicos dão as orientações necessárias sobre como obter os melhores resultados, a partir de estudos sobre as exigências do mercado. Uma das grandes virtudes do projeto foi aproximar o produtor do mercado, permitindo um maior entendimento das necessidades do consumidor. As atividades realizadas incluem o desenvolvimento de marcas locais de carne bovina e de carneiros, laticínios e produtos florestais, bem como o desenvolvimento de serviços locais de saúde e de finanças, assistência individual a empreendimentos agrícolas e projetos de parceria com frigoríficos e distribuidores de carne. Adicionalmente, um selo para identificar os participantes do projeto está sendo criado. 6. Conclusão e comentários Neste artigo procuramos apresentar apenas uma breve descrição do crescente movimento de certificação da qualidade de produtos agroalimentares e outras atividades na Europa, com a finalidade de aumentar seu valor para o consumidor e a competitividade dos produtores. A pujança deste movimento pode ser percebida pelo aumento contínuo de certificados criados e gerados e da participação de produtos certificados no mercado europeu. Esta tendência indica claramente que, além de lutar pela redução dos impostos de importação de produtos agroalimentares na Europa, o Brasil deverá também se preparar para competir com a qualidade dos mesmos. 7. Fontes consultadas Notas das palestras: "Les Nouvelles Méthodes de Gestion de la Qualité", proferida pelo professor Raymond Faillenet - Ecole Nationale des Techniques des Industries Agro-Alimentaires - ENITIAA/IQUABIAN - Nantes, França. "Le Rôle des chambres d'Agriculture en France" proferida pelo Sr. Rémi Mer, da Câmara de Agricultura Loire Atlantique, Nantes, França. "The Bowland Initiative", proferida pelo Sr. John Welbank, coordenador do projeto Bowland Initiative na região de Bowland, Inglaterra. Autores
Mario Otávio Batalha, coordenador e professor dos cursos de pós graduação em Gestão Agroindustrial da Universidade Federal de São Carlos e da Universidade do Paraná - Unipar. Simon Podolsky Sala, consultor da Wey Excel, professor de Gestão Ambiental do Curso de Gestão Agroindustrial da UFSCar e Mestrando em Engenharia de Produção pela UFSCar.
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